A margem do rio é o último porto seguro da paisagem. Nela se dá a contemplação das águas passando, sendo se movendo, a impermanência sem cessar. O cenário detrás da cortina aquosa, uma busca, um barco, a incompreensão. Contemplar a incompreensão. Esperar respostas que vêm em naus de naufrágio.
Se existe “a terceira margem do rio”, de JGR, ela é a miragem, o enigma, a total indignação, a loucura, essa não: “Ninguém é doido. Ou, então, todos”. A terceira margem é o meio do rio, a imagem miragem de um reencontro impossível. E como ficar estático no meio do rio? A travessia incompleta, o abandono sem ausência total?
Acredito que todos tenham uma terceira margem, mas o contato com ela pode não ser fácil, ou pode ser até inexplicável (não disse, dizendo, JGR). Contudo, é importante para quem escreve algum contato com essa realidade paralela – ter um caso com o caos, um casamento com a tormenta.
São perguntas dessa água viciada em descer: - Vai entrar? Vai temer? Deve ser por isso que a água é também um espelho.
Pensava meses antes de finalizar o livro – enquanto ele boiava descansando nalgum lago da mente – que “lançar um livro é um lançar-se”. Mas o “lançar-se”, na verdade, acontece na escrita, quando pulamos dentro do espelho duplo das águas: do enigma e do convite. Não estranhamente, a ideia veio enquanto ainda o escrevia. E escrever foi um mergulho noturno num rio baldio, um revisitar palavras abandonadas por mim mesma.
Recentemente, com a versão final do texto revisada, pensei: “publicar um livro é decepar um tentáculo”, e para isso me vi polvo, um animal sábio que administra esses tentáculos. Eu ainda não publiquei o livro, então talvez pense mais a frente em outras expressões para dar conta desse sentir.
De qualquer forma, já me sinto dentro do rio, desconhecendo o percurso, mas me preparando para fluir, sabendo que deixei bagagem à/na margem e que trouxe na trouxa o essencial. Sabendo das amputações de polvo, das escamas de peixe que se vão. Da nudeza legada pelas palavras.
Mas a trajetória da perda é feita de muitas conquistas, uma delas foi um texto da Tatiana Lazzarotto, do belíssimo Quando as Árvores Morrem (Claraboia, 2022), sobre o meu livro. Tantas vezes as águas do futuro nos preparam surpresas boas, inimagináveis. É preciso confiar na escrita, nos encontros, no curso do rio. É preciso “calminhar”, como se o fundo do rio fosse forrado de pérolas. E é.
Prestes a perder meu primeiro tentáculo, ganhei uma linda orelha. A orelha, abas que abraçam o livro, com palavras de bênção. A orelha que norteia o leitor, falando pelo livro antes dele mesmo, e que, versátil, marca páginas e demarca o encontro entre escritor e leitor
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Maitê Pereira Lamesa é natural de Jaú/SP, mãe, advogada (UEL), mestra em Relações Internacionais (Programa San Tiago Dantas - UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Atualmente reside em São Paulo, alternado com períodos na zona rural do interior de São Paulo. Começou a publicar seus escritos em outubro de 2022, desde então teve alguns poemas publicados em revistas digitais e selecionados para antologias futuras. O livro Escamas de Mil Peixes será seu livro de estreia.