Escama #3 | Escorregadio é o rio, escorregarrio
As palavras são lisas como bagres ou quimeras
Correndo o risco de só falar de JGR, meu rabisco se faz risco. Pisco. Vamos “(…) à beira da mata de algum rio, que proíbe o imaginar”. O vasculho mental de JGR geram lembranças esbarradas na memória. Escamas de Mil Peixes vem exatamente da lembrança viva que perde o vigor a cada dia e que, para sobreviver, se mistura ao imaginar à beira da mata de algum rio. Não o rio fugidio de JGR, um rio, aqui, perdido no espaço geográfico. Que é real, mas que por vezes é só o imaginar.
Se a margem, que estabelece limites, “proíbe o imaginar”, são os escritores transgressores? Afinal, os lugares mais brutos e prontos, como as matas que margeiam os rios, que visualmente não aceitam sequer um atravessado de cipó pendente, é o convite ao imaginar, que não é o pensar. É precisamente o imaginar, que é o pensar magicamente. É quando o pensamento se presta a recriar o espaço real, que é, que não é.
É a imagem, oras. Pensar com imagens. Colocar barcos no correr, e quase vê-los se quebrando nas pedras, com força. É ver o fundo opaco através da turbidez. É ver a sucuri entocada, é ver o coqueiro irreal, que é só o reflexo do coqueiro na superfície d´água. É mais que ver o visível, é crer pontualmente no invisível.
As palavras são feitas disso. Crer e criar. Algo que vive dentro da gente e que dialoga cristalinamente com as águas claras ou escuras. E o imaginário é a mágica. O rio ou é um convite irrecusável ou é um segundo de pavor que espanta em definito o mergulho. Há quem fique em cima do muro? É um enlace ou desenlace com o mistério, e vírgula, reticências…
e PlACk…o som do corpo no concreto das águas! Esse transformar tudo em realidade. O rio é a primeira página do livro, as demais são correnteza. Lisos lodos lamas limos. Livres. As águas, sim, os livros, sei que nem sempre, mas esse eu escrevi do lado de fora da gaiola. A liberdade não é estar no controle, escolhendo tudo às claras. A liberdade é não ter controles.
Existe uma força, um trago, um afogar (?) que me fez escrever esse livro. Ele veio até mim simplesmente assim: escrever inconscientemente, inconsistentemente, e quinze anos depois sair para pescar com um balaio; ter um nome que vem dos abismos subaquáticos e que já quase morre na lembrança azul-marinha; ser atingida por um raio nas margens e, desfalecida, dizer: preciso publicar. Pronunciar minhas imagens. Dar asas aos atrasos.
E depois? E depois…escutar o rio, confiar no som subcutâneo das águas, deixar brotar as escamas, e permear tudo pela voz do peixe. O Peixe que costurou os recortes incosturáveis. O Peixe que trançou a rede. O Peixe que fisgou minha mente.
As palavras são lisas como bagres ou quimeras, estão sempre indo e vindo, esquivas, fugitivas, oníricas, oráculas, idílicas: tentar agarrá-las como se fossem nossas é o engano. Por isso, que escrevam os peixes, enquanto eu escorrego, a tudo esguelhando:
Escorregadio é o rio
escorregarrioRiso liso
no raso nunca pisoe durmo de olhos abertos
(poema do livro “Escamas de mil peixes”)
Caio dentro do raio, uma única vez basta. Ele partiu ao meio o medo…em dois…e depois, em quatro…e assim progressiva e exponencialmente. O medo desmedido que virou medinhos medidos. Meandros.
Finco os pés na paisagem. fico para sempre de passagem.
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Maitê Pereira Lamesa é natural de Jaú/SP, mãe, advogada (UEL), mestra em Relações Internacionais (Programa San Tiago Dantas - UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Atualmente reside em São Paulo, alternado com períodos na zona rural do interior de São Paulo. Começou a publicar seus escritos em outubro de 2022, desde então teve alguns poemas publicados em revistas digitais e selecionados para antologias futuras. O livro Escamas de Mil Peixes será seu livro de estreia.