Há um cansaço que brota no descer do rio: a colisão com pedras, muitas curvas e desvios, algo que sempre foge ao previsto. O desemboque é um cansaço de anos e uma expectativa de alívio, mas logo noto que não há paz, o encontro das águas não é pacífico – as águas doces querendo adocicar o mar, o mar salgado querendo salgar o doce. Sabemos todos quem vence ao final. E a promessa de liberdade e de paz é uma doce ilusão, que não escapa ao sal do mar.
[ nunca se está livre do gancho do azol, do gancho do guindaste, o gancho da morte, a ponta de atrocidades ]
Algo em mim resiste à tristeza de pensar que o final é sempre triste. Isso só acontece porque o curso do rio foi desviado artificialmente. Então escrevo quase sem energia, vendo que o rio sangra e que o mar está sujo de lama e de óleo. Não há nada que mãos pequenas possam fazer, há? HÁ? (de-novo-e-de-novo). Ricas miudezas há em todas as partes. E as palavras, o que podem fazer quando estão pálidas de espanto? Elas podem escrever “que o mar está sujo de lama e de óleo” e a essa frase triste, elas podem talvez acrescentar outras tantas de alento, calma e...(há uma palavra que busco e que ainda não acho).
Olho algumas obras de Heba Zagout, artista palestina morta recentemente pelos bombardeios israelenses em Gaza. Vejo nelas o imortal, em cores vivas de alegria. A palavra que faltava no parágrafo anterior arranha o vidro jateado, mas ainda não entra.
Penso novamente nas palavras, atrasadas, inertes, paralisadas no medo que é ver o oceano cercado. Uma face, a outra é maior: o poder da imortalidade. As palavras que sobrevivem sob qualquer circunstância, quando trazem consigo a frota da paz.
Recebi ontem o livro Eu vi Ramallah (I saw Ramallah) de Mourid Barghouti, original publicado em 1997, no qual o autor reflete sobre sua experiência de retornar à Palestina após 30 anos no exílio.
Este livro não pode esperar na fila de livros a serem lidos e, contrariando meu jeito metódico de ler os livros, rapidamente abri de forma aleatória: “A canção retroage e a realidade caminha para frente com suas exigências cruéis”. Fechei o livro ainda mais rápido, sem tempo de anotar a página.
Seria tão bom se a realidade não passasse de um pesadelo, que o mar fosse liberto, e que pudéssemos fechar o livro de páginas manchadas da história, ou arrancá-las de repente, e que isso bastasse para que elas deixassem intacta nossa realidade.
Então decido voltar ao livro, agora pelo começo. Leio o prefácio do autor para a edição em português. Ele relata sobre o encontro com José Saramago em Ramallah, em 2002, quando um grupo de escritores do Parlamento Internacional de Escritores esteve na Palestina para afirmar seu apoio à causa daquele povo.
Paro por um instante, penso em Ensaio sobre a cegueira, e na cegueira branca como a pior que pode existir, não como uma doença contagiosa que acomete os olhos, mas como uma doença contagiosa que acomete o cérebro, a cegueira voluntária que flerta com a barbárie, que desumaniza os outros para poder crer na própria existência.
É preciso lembrar que, sem a interpretação do cérebro, nossas retinas contêm imagens de um mundo totalmente invertido. Distorcido. É nossa razão que as corrige e as orienta à lei da gravidade. E apesar de tantos pesares, ainda temos os pés presos no chão.
E voltando para onde estávamos: um estuário deveria ser um rebuliço de águas que se espantam não com a prisão, mas com a imensidão. ÃO. Penso em redençÃO, acredito que seja a palavra que me faltava há pouco.
E para chegar a ela, penso ainda em outra palavra: firmeza, a mesma que está contida no livro de Barghouti, a mesma que está nas obras de Zagout ou mesmo nas últimas palavras de Heba Abu Nada, escritora palestina também morta pelos bombardeios israelenses: “Se morrermos, saiba que estamos contentes e firmes, e transmita em nosso nome que somos pessoas de verdade”. Não se desesperar é a única forma de manter a dignidade e sobreviver.
As águas estão sempre a se mover.
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Maitê Pereira Lamesa é natural de Jaú/SP, mãe, advogada (UEL), mestra em Relações Internacionais (Programa San Tiago Dantas - UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Atualmente reside em São Paulo, alternado com períodos na zona rural do interior de São Paulo. Começou a publicar seus escritos em outubro de 2022, desde então teve alguns poemas publicados em revistas digitais e selecionados para antologias futuras. O livro Escamas de Mil Peixes será seu livro de estreia.
Que bom que existe a arte para transformarmos a dureza da realidade em palavras que chegam com amor ao coração.